Discurso do Papa João Paulo II em Compostela em 1982
O Papa João Paulo II em Compostela em 1982
Seguindo com nossas homenagens por motivo da beatificação e canonização do Papa João Paulo II Apresentamos o discurso que deu em sua primeira viagem a Santiago de Compostela em 1982.
Embora tenham passado 28 anos, consideramos que o discurso que fez naquele dia é mais atual do que nunca:
Majestades, excelentíssimos e ilustríssimos senhores, senhoras, irmãos,
1. No fim do meu peregrinação por terras espanholas, me detengo nesta esplêndida Catedral, tão estreitamente ligada ao Apóstolo Santiago e a fé da Espanha. Permitam-me que, antes de tudo, agradeça vivamente a Sua Majestade o Rei as importantes palavras que me dirigiu ao princípio deste ato.
Este lugar, tão querido para os galegos e espanhóis todos, foi no passado um ponto de atração e de convergência para a Europa e para toda a cristianidade. Por isso, quis encontrar aqui representantes distintos de Organismos europeus, dos bispos e Organizações do continente. A todos dirijo o meu deferente e cordial saudação, e com vocês quero refletir esta tarde sobre a Europa.
O meu olhar se estende nestes instantes sobre o continente europeu, sobre a imensa rede de vias de comunicação que unem entre si às cidades e nações que o compõem, e volto a ver aqueles caminhos que, desde a Idade Média, conduziram e conduzem a Santiago de Compostela — como demonstra o Santo Ano que se celebra este ano— inúmeras massas de peregrinos identificados com a concha de vieira, atraídas por ιa devoção ao apóstolo.
Desde os séculos XI e XII, sob o impulso dos monges de Cluny, os fiéis de todos os cantos da Europa frequentam cada vez mais frequentemente fazia a Túmulo do Apóstolo Santiago, alargando até o considerado Fines terrae, então, aquele célebre Caminho de Santiago, pelo qual os espanhóis já haviam peregrinado. E encontrando assistência e cobilho em figuras exemplares de caridade, como Santo Domingo de la Calzada e San Juan Ortega, ou em lugares como o santuário da Virgem do Caminho.
Aqui chegavam da França, Itália, Centroeuropa, Países Nórdicos e Nações Eslavas, cristãos de toda condição social, dos reis aos mais humildes habitantes das aldeias; cristãos todos os níveis espirituais, desde santos, como Francisco de Assis e Brígida da Suécia (por não citar tantos outros espanhóis), aos pecadores públicos em busca de penitência.
A Europa inteira encontrou-se ao mesmo redor daImagem de Santiago Apóstolo, nos mesmos séculos em que ela se edificava como continente homogêneo e unido espiritualmente. Assim, o mesmo Goethe sugerirá que a consciência da Europa nasceu peregrinando.
2. La peregrinação a Santiago foi um dos fortes elementos que favoreceram a compreensão mútua de povos europeus tão diferentes, como os latinos, os germanos, celtas, anglo-saxões e eslavos. A peregrinação acercava, relacionava e unia entre si aquelas pessoas que, século após século, convencidas pela pregação das testemunhas de Cristo, abraçavam o Evangelho e contemporâneamente, pode-se afirmar, surgiam como povos e nações.
A história da formação das nações europeias vai à par com a sua evangelização; até o ponto de as fronteiras europeias coincidem com as da penetração do Evangelho. Depois de vinte séculos de história, no entanto, os conflitos sangrentos que enfrentaram os povos da Europa, e apesar das crises espirituais que marcaram a vida do continente, até colocar a consciência do nosso tempo graves interrogantes sobre a sua sorte futura, deve-se afirmar que a identidade europeia é incompreensível sem o cristianismo, e que justamente nele se encontram aquelas raízes comuns, das quais amadureceu a civilização do continente, sua cultura, seu dinamismo, sua atividade, sua capacidade de expansão construtiva também nos demais continentes; em uma palavra, tudo o que constitui sua glória.
E ainda nos nossos dias, a alma da Europa permanece unida porque, além da sua origem comum, tem idênticos valores cristãos e humanos, como são os da dignidade da pessoa humana, do profundo sentimento de justiça e liberdade, de laboriosidade, de espírito de iniciativa, de amor à família, de respeito à vida, de tolerância e de desejo de cooperação e de paz, que são notas que a caracterizam.
3. Chamo-me olhar para mim. A Europa como o continente que mais contribuiu para o desenvolvimento do mundo, tanto no terreno das ideias como no do trabalho, no das ciências e das artes. E enquanto bendigo o Senhor por tê-lo iluminado com sua luz evangélica desde as origens da pregação apostólica, não posso silenciar o estado de crise em que se encontra, ao assomar-se ao terceiro milênio da era cristã.
Falo a representantes de organizações nascidas para a cooperação europeia, e a irmãos no Episcopado das distintas Igrejas locais da Europa. A crise atinge a vida civil como a religiosa. No plano civil, Europa se encontra dividida. Umas fraturas innaturais privam os seus povos do direito de se encontrarem todos recíprocamente em um clima de amizade; e de unir livremente os seus esforços e criatividade ao serviço de uma convivência pacífica, ou de uma contribuição solidária para a solução de problemas que afetam outros continentes. La vida civil se encontra marcada pelas consequências de ideologias secularizadas, que vão desde a negação de Deus ola limitação da liberdade religiosa, à preponderante importância atribuída ao sucesso econômico em relação aos valores humanos do trabalho e da produção; desde o materialismo e o hedonismo, que atacam os valores da família prolífica e unida, os da vida recém concebida e a tutela moral da juventude, a um nihilismo que desarma a vontade de enfrentar problemas cruciais como os de e os novos pobres, os migrantes, as minorias étnicas e religiosas, a utilização reto dos meios de informação, enquanto arma as mãos do terrorismo.
A Europa está também dividida no aspecto religioso: Não tanto nem principalmente por razão das divisões sucedidas através dos séculos, quanto pela defecção de batizados e crentes das razões profundas de sua fé e do vigor doutrinal e moral dessa visão cristã da vida, que garante equilíbrio às pessoas e comunidades.
4. Por isso, Eu, João Paulo, filho da nação polaca que foi sempre considerada europeia, pelas suas origens, tradições, cultura e relações vitais; eslava entre latinos e latinos entre os eslavos; Eu, Sucessor de Pedro na Sé de Roma, uma Sé que Cristo quis colocar na Europa e que ama por seu esforço na difusão do cristianismo em todo o mundo. Eu, Bispo de Roma e Pastor da Igreja universal, desde Santiago, te lanço, velha Europa, um grito cheio de amor:Volta a te encontrar. Eu sei você mesma. Descubra suas origens. Aviva suas raízes. Revive aqueles valores autênticos que fizeram gloriosa sua história e benéfica sua presença nos demais continentes. Reconstrue sua unidade espiritual, num clima de pleno respeito às. outras religiões e às genuínas liberdades. Dá ao César o que é do César e a Deus o que é de Deus. Você não se orgulha pelas suas conquistas até esquecer suas possíveis consequências negativas. Não te deprima pela perda quantitativa da sua grandeza no mundo ou pelas crises sociais e culturais que te afetam agora. Você pode ser ainda farol de civilização e estímulo de progresso para o mundo. Os outros continentes olham para você e esperam também de você a mesma resposta que Santiago deu a Cristo: posso.
5. Se a Europa é uma, e pode sê-lo com o devido respeito a todas as suas diferenças, incluindo as dos diversos sistemas políticos; se a Europa voltar a pensar na vida social, com o vigor que têm algumas afirmações de princípio como as contidas na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Declaração Europeia dos Direitos do Homem,Acta final da Conferência para a Segurança e a Cooperação na Europa; sim a Europa volta a agir, na vida especificamente religiosa, com o devido conhecimento e respeito a Deus, no qual se baseia todo o direito e toda a justiça; se a Europa abre novamente as portas a Cristo e não tem medo de abrir o seu poder salvífico os confins dos estados, os sistemas econômicos e políticos, os vastos campos da cultura, da civilização e do desenvolvimento (Cfr.Insegnamenti di Giovanni Paolo II, I (1978) 35 ss), O seu futuro não será dominado pela incerteza e o medo, antes bem se abrirá a um novo período de vida, tanto interior como exterior, benéfico e determinante para o mundo, ameaçado constantemente pelas nuvens da guerra e por um possível ciclone de holocausto atômico.
6. Nesses instantes vêm a mim mente os nomes de grandes personalidades: homem e mulheres que deram esplendor e glória a este continente por seu talento, capacidade e virtudes. A lista é tão numerosa entre os pensadores, cientistas, artistas, exploradores, inventores, chefes de estado, apóstolos e santos, que não permite abreviações. Estes constituem um património estimulante de exemplo e confiança. A Europa ainda tem em reserva energias humanas incomparáveis, capazes de a sustentar neste histórico trabalho de renascimento continental e de serviço à humanidade.
É-me grato lembrar agora com simplicidade a força de espírito de Santa Teresa de Jesus, cuja memória quis especialmente honrar durante esta viagem, e a generosidade de Maximiliano Kolbe mártir da caridade no campo de concentração de Auschwitz ao qual recentemente proclamado santo. Mas merecem particular menção Os Santos Benito de Nursia e Cirilo e Metodio, Patronos da Europa. Desde os primeiros dias do meu pontificado, não deixei de salientar o meu pedido pela vida da Europa, e de indicar quais são os ensinamentos que vêm do espírito e ação do patriarca do Ocidente e dos dois irmãos gregos, apóstolos dos povos eslavos.
Bento soubear a romanidade com o Evangelho, o sentido da universalidade e do direito com o valor de Deus e da pessoa humana. Com sua conhecida frase ora et labora — reza e trabalha — nos deixou uma regra válida ainda hoje para o equilíbrio da pessoa e da sociedade, ameaçada pelo prevalecer doter sobre oser.
Os Santos Cirilo e Método Supieron antecipar algumas cοnquistas, que foram assumidas plenamente pela Igreja no Concílio Vaticano II, sobre a inculturação da mensagem evangélica nas respectivas civilizações, tomando a língua, os costumes e o espírito da família com toda plenitude de seu valor. E isso aconteceu no século IX, com a aprovação e o apoio da Sé Apostólica, dando lugar assim àquela presença do cristianismo entre os povos eslavos, que permanece ainda hoje insuprimível, apesar das atuais vicissitudes contingentes. Aos três Patronos da Europa dedicado peregrinações, discursos, documentos pontifícios e culto público, implorando sobre o continente sua proteção e mostrando ao mesmo tempo seu pensamento e seu exemplo às novas gerações.
A Igreja é também consciente do lugar que lhe corresponde na renovação espiritual e humana da Europa. Sem reivindicar certas posições que ocupou no passado e que a época atual vê como totalmente superadas, a mesma Igreja se põe ao serviço, como Santa Sé e como Comunidade católica, para contribuir para a consecução daqueles fins, que procurem um verdadeiro bem-estar material, cultural e espiritual às nações. Por isso, também a nível diplomático, está presente por meio dos seus Observadores nos diversos organismos comunitários não políticos; pela mesma razão mantém relações diplomáticas, o mais extensas possíveis, com os Estados; pelo mesmo motivo participou, na qualidade de membro, na Conferência de Helsínquia e na assinatura do seu importante Acto final, bem como nas reuniões de Belgrado e de Madrid; esta última, reaberta hoje; e para a qual formulo os melhores votos em momentos não fáceis para a Europa.
Mas é a vida eclesial que é chamada principalmente em causa, a fim de continuar dando testemunho de serviço e de amor, para contribuir para a superação das actuais crises do continente, como tive ocasião de repetir recentemente no Simpósio do Conselho das Conferências Episcopales Europeias (Cfr. IOANNIS Pauli PP. IIAllocutio ad Consilium Conferentiarum Episcopalium Europae habita, die 5 oct. 1982: videsupra, pp. 689 ss.).
7. A ajuda de Deus está conosco. A oração de todos os crentes nos acompanha. A boa vontade de muitas pessoas desconhecidas artífices de paz e de progresso está presente em meio a nós, como uma garantia de que esta Mensagem dirigida aos povos da Europa vai cair num terreno fértil.
Jesus Cristo, o Senhor da história, tem aberto o futuro às decisões generosas e livres de todos aqueles que, acolhendo a graça das boas inspirações, se comprometem a uma ação decidida pela justiça e pela caridade, no marco do pleno respeito à verdade e à liberdade.
Encomendo estes pensamentos à Imagem da Santíssima Virgem, para que os abençoe e faça fecundos; e lembrando o culto que se dá à Mãe de Deus nos numerosos santuários da Europa, de o Santuário da Virgem de Fátima a Ostra Brama, de Lourdes e Loreto a CzęstochowaPeço-lhe que acolhe as orações de tantos corações: para que o bem continue sendo uma alegriasa realidade na Europa e Cristo tenha sempre unido o nosso continente a Deus. "